Nos últimos meses a sociedade passou a ser assombrada pelas declarações insistentes da cúpula do governo federal sobre a necessidade de reformas no sistema previdenciário, sob o argumento de que há grande déficit nas contas da previdência que, consequentemente, impedirá a manutenção dos pagamentos de benefícios futuramente.
De acordo com dados divulgados pelo governo, a arrecadação tem sido muito menor que os gastos que a previdência tem pagando os benefícios a que a população tem direito.
Na última semana concretizou-se o que era apenas ameaça: o projeto foi entregue à Câmara dos deputados para ser votado em regime de urgência, com vários pontos controversos e que representam imenso e inegável retrocesso social, com a retração de vários direitos aos quais já haviam se acostumado os segurados.
O bombardeio de informações negativas acerca da saúde previdenciária brasileira, bem como as opiniões de pseudo entendedores da matéria, como economistas, nos meios de comunicação, em especial a televisão, tem turvado a visão dos brasileiros sobre o tema e direcionado a opinião pública para a simples aceitação do que está a acontecer. As pessoas simplesmente acatam as reformas colocadas no projeto para poderem gozar de um benefício no futuro, ainda que seja em um amanhã bem distante no tempo.
Entretanto, cabe-nos avaliar o diagnóstico da previdência social sob a visão de juristas previdenciaristas, verdadeiros estudiosos da ciência em questão, conhecedores de todas as especificidades que cercam a matéria, como fontes de custeio, sistema de repartição simples, histórico da previdência social, objetivos e princípios constitucionais que regem a matéria.
Sob a ótica desses juristas renomados, cujos pareceres são embasados em estudos sérios e mais bem intencionados, a Previdência Social não é deficitária e não existe o risco de quebrar.
Os argumentos governamentais para dizer o contrário são construídos com fundamento em manobra de cálculos, como a conhecida fórmula receita-despesa, que é o que se arrecada e o que se gasta. O discurso do governo para assegurar que há déficit é embasado na afirmativa de que as contribuições feitas pelos segurados são insuficientes para manter o número de benefícios que são distribuídos aos segurados inativos, afastados, indenizados e pensionistas, ou seja, tem-se a impressão de que o custeio da previdência é feito somente com as contribuições descontadas da folha de pagamento dos funcionários das empresas ou dos contribuintes individuais. Todavia, sonega-se a informação de que o fardo do custeio da previdência é responsabilidade dividida de formas múltiplas, ou seja, entes que nunca farão uso de benefícios (nunca darão despesa) ajudam a manter a previdência, como as empresas que complementam a contribuição descontada de seus funcionários, a renda obtida de concursos públicos e loterias, contribuições feitas tendo como fato gerador a construção de imóveis, contribuição sobre a comercialização de produtos agrícolas, etc.
Como forma de aumentar o alarde sobre a questão, o débil setor de cálculos do governo contabiliza, para criar a falácia do déficit, os pagamentos a título de benefícios de prestação continuada (LOAS), que tecnicamente não são benefícios previdenciários, mas sim benefícios assistenciais, previstos constitucionalmente. A Previdência Social, nesse caso, somente é encarregada de administrar essas prestações e não de custeá-las, não podendo tais verbas fazer parte de conta para averiguar déficit no sistema previdenciário.
Não se pode esquecer, principalmente, que até mesmo o governo federal tem sua parcela a contribuir com a previdência social, com o repasse de recursos obtidos da COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e do CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), montantes que nunca são contabilizados quando se busca auscultar os batimentos cardíacos do sistema previdenciário nacional. Todos esses dados propositalmente deturpados geram números que espantam, fazendo surgir essa situação de insegurança quanto à capacidade de manutenção da previdência para as gerações futuras, legitimando medidas que buscam restringir direitos sociais conquistados a duras penas através de lutas de várias gerações passadas.
Outro aspecto terrivelmente leviano é o fato de a governança lançar sobre os segurados do Regime Geral de Previdência Social (INSS) a missão de tentar recuperar recursos para seus cofres à custa de privação de direitos constitucionalmente estatuídos através de princípios, como o da não retroatividade das conquistas sociais. Conhece-se perfeitamente que a grande massa dos segurados do RGPS sobrevive de benefícios com valor de salário-mínimo, ao contrário dos vultuosos salários dos Regimes Próprios de Previdência Social, cujos benefícios são custeados pela Previdência sem o lastro financeiro pertinente, esses sim causando rombos enormes no erário. Deveria ser a partir deles qualquer tentativa de se reconfigurar a Previdência Social e não do Regime Geral, cujas benesses, à toda vista, são naturalmente mais restritivas e muito menos onerosas aos cofres públicos.
Não se pode deixar de lado ainda, quando se fala em déficit previdenciário, a famigerada DRU (Desvinculação de Receitas da União), mecanismo que permite ao governo federal desvincular 30% das contribuições sociais (destinadas à educação, saúde e previdência) para aplicar em qualquer área que pense prioritária. Normalmente é usada para pagar juros da dívida pública. A Previdência Social é tão firme que o governo prontamente a elege como doadora oficial de receitas desvinculadas, pois aquele sabe que lá existe um caixa recheado. Deduz-se, daí, pela própria atitude governamental, que a Previdência Social é o ente mais abastado do país, pois não se retiraria dinheiro de um cofre que estivesse vazio ou deficitário. Cabe ainda ressaltar, que o mencionado mecanismo governamental foi criado no ano 2000 através da Emenda Constitucional nº 27, e o que, inicialmente, era para ser provisório, tornou-se permanente, pois sempre que o prazo de sua vigência está por vencer, acaba sendo renovada sob o argumento da possível ingovernabilidade financeira do país.
O discurso do governo acerca da existência de um “rombo” nas contas da Previdência está absolutamente incoerente com a sua postura adotada, pois a alíquota da DRU que antes era de 20%, foi majorada recentemente para 30% por meio da Emenda Constitucional nº 93. Além disso, esse aumento teve seus efeitos retroagidos a 1º de janeiro de 2016 e o prazo de vigência foi estendido até 31 dezembro de 2023. Na prática, somente 70% de tudo que se arrecada para a Previdência Social serão gastos com o pagamento de benefícios aos seus segurados. Diante deste cenário e com este argumento do “déficit” da previdência, fica difícil o governo convencer a população de que é necessário reformar a Previdência Social, eliminando direitos sociais conquistados a duras penas.
Após essa superficial análise, podemos nos perguntar: que interesse haveria por trás de todo esse movimento que está prestes a provocar a revisão mais retrógrada do ponto de vista das garantias sociais já vista na previdência? Infelizmente, não se trata de mera teoria da conspiração, como podem pensar alguns. Tudo o que está a ocorrer nessa área faz parte de um corpo maior de intenções, dentre as quais está a de atrofiar o garantismo previdenciário estatal e empurrar clientes em massa para os planos privados de previdência, mais vulneráveis do ponto de vista fiscalizatório e incertos quanto à retributividade, além do que são meramente sistemas de capitalização, que fazem retornar de forma simples os valores corrigidos que foram lançados em seus cofres, até o limite das contribuições, nada mais que isso, o que significa que haverá pessoas que terão existência maior que seus benefícios, que sobreviverão, após receberem esses valores, de modo temerário e duvidoso.
Por fim, uma alternativa simples poderia ser proposta nesse momento sinistro: efetivar a cobrança das dívidas bilionárias de grandes empresas devedoras da Previdência Social, aumentar os mecanismos de combate à sonegação fiscal, reduzir as isenções fiscais concedidas a seletos grupos empresariais e parar de mirar tanto nos peixes pequenos.
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